E mesmo passado apenas um ano, se dissesse que ninguém envelheceu, estaria a mentir, porque pelo contrário, todos me parecem cada vez mais velhos.
Vêem-se avós, tios, primos muitíssimos afastados, e pergunta-se sempre: “Tem passado bem?”, “Então e como tem passado a sua vida?” ou “E a mulher não pôde vir porquê?”. Muitas vezes não passaram bem porque a ex-mulher os abandonou e tiveram uma depressão, outras, estão muito bem, porque receberam uma promoção.
É engraçado ver os velhos a confraternizar com adultos, tentado meter se na vida deles, enquanto que os adultos só se querem meter com os adultos, e claro, as crianças ficam a um cantinho, todas juntas, e mesmo assim, divertem-se ainda mais que alguns dos adultos.
O programa para as crianças é um pouco diferente do dos adultos; enquanto estes conversam uns com os outros, elas brincam, com primos que não vêem há mais de um ano, mas que ao contrário dos adultos, estas são pessoas por que esperam ansiosamente todo o ano. Há um cão rafeiro (que na minha opinião, por ter nome, origem e destino desconhecido, chamaram-lhe isso mesmo, Desconhecido) com que toda a gente pequena brinca, apesar dos constantes e sérios avisos das avós e tias de que podemos apanhar pulgas; depois vamos para a mata ver as cabras que la estão presas. Parece que desta maneira, não nos é ocupado muito tempo, mas lembrem-se que uma criança consegue sempre ocupar o seu tempo.
E claro, há ainda o grande almoço, em que toda a gente traz um pequeno contributo; se for uma dona de casa muito prendada, trará o seu melhor doce ou melhor petisco, mas se for como por exemplo, a Tia Graça de Lisboa, não se dará a tanto trabalho e trará novidades comestíveis lá da Capital, para as crianças é normalmente gomas. Enquanto as mulheres estão todas a participar numa maratona entre a cozinha e a sala, para levarem as coisas rapidamente para a mesa, os homens ficam ao ar livre, cantando fados e grelhando a carne que será servida ao almoço, juntamente com as novas batatas fritas de sabor a tutti frutti.
Estando já tudo preparado, as crianças são chamadas para a sua mesa, enquanto que minha mãe me chama à parte e anuncia-me que desta vez ficarei na mesa dos adultos e que sou demasiado crescida para tanta algazarra. Minha mãe é uma das pessoas mais rígidas que conheci, nos meus dez (longos) anos de vida. E não sei porquê, mas acha-me diferente das outras crianças, mais adulta e responsável que elas. Se queria ir para a mesa dos adultos? Não, mas podia experimentar… Minha mãe sempre tinha razão, dizia-lhe o meu pai.
Sentada à mesa, uma mesa muito velha, que parecia muito frágil, minhas mãe decide mudar-me de lugar e põe-me entre duas tias que jurava nunca tinha visto na minha vida, mas que diziam conhecer me melhor que eu própria. Claro que comecei a desejar dali sair, ir ter com as outras crianças da minha idade, mas tinha que seguir as ordens da mãe.
-Já está tão crescida! Tem quantos anos a menina? Oito? – Pergunta-me a tia Amélia, uma pessoa que de tão velha e de tantas pessoas ver morrer, a cabeça dela já não era o que era dantes…
-Dez – respondi eu – e a senhora? Cem?
-Uh! Que miúda mais mal-educada! – Consegui concretizar o meu plano, agora indignada, não falaria comigo o resto da refeição.
-Não ligues a tia Amélia, que ela está tótó da cabeça. Diz-me, já és muito crescida para a tua idade… Foi por isso que a tua mãe te pôs na mesa dos adultos? – Quem desta vez falava era uma mulher de vinte e tal anos, que não me lembro de alguma vez a ter visto. Estava a minha frente, e devia ser vegetariana, porque enquanto toda a gente comia selvagemente as costeletas, ela olhava-os com desdém, penicando apenas o arroz que tinha no prato.
-Eu não sou criança. Já li o Moby Dick – Indignada estava eu agora.
E só agora reparava que ela era muito magra e tinha os olhos muito saídos das órbitas.
-Queres que te trate como um adulto então? – Ela olhava-me fixamente, e apesar dos seus olhos parecerem mortos, algo neles brilhava, como uma réstia de esperança; uns olhos esbugalhados avançavam para mim, enquanto me indicavam para sair da mesa.
Ninguém reparou que saímos da mesa, da mesma maneira que eu nunca tinha reparado nos outros encontros da família naquela personagem desconhecida. Aproximámo-nos de uma árvore e reparei que ela estava cansada, só por ter andado uns 100 metros, por isso sentou-se e começou a arfar.
-Sabes Liliana, ninguém é o que tu pensas que é. Todos acabam por se tornar monstros, e nada podes para controlar isso.
Naquele momento, debaixo daquela árvore, senti como se sempre a tivesse conhecido, que era amiga dela, por isso arranjei coragem para lhe perguntar porque parecia tão doente.
-Na universidade conheci um rapaz, com o qual acreditava que iria ficar com ele para sempre. Prometi-lhe isso e agora não posso voltar atrás. Há dois meses, fomos de férias para o Alentejo e ele parou o carro e prendeu-me a uma árvore. Deixou-me lá três dias. Ao primeiro dia não sabia onde estava, tentava-me libertar, mas não conseguia. Ao segundo, desisti, passei todo o dia e toda a noite a olhar para o céu. Ao terceiro, ele finalmente veio-me buscar. Foi assim que fiquei controlada por ele.
Sendo eu uma criança na altura, não me apercebi do quão forte aquelas palavras tinham sido, não parava de olhar para ela, uma mulher tão forte, tinha resistido aos abusos do namorado, e que agora não conseguia fugir.
Minha mãe estava-me a observar de longe, via-se na cara dela que estava zangada, por isso fui ter com ela, que me disse para me afastar daquela mulher.
Acho que aquele semblante se foi embora logo a sair, para nunca mais ouvir falar dela.
A minha mãe disse-me que me telefonou no dia em que fiz 11 anos, e que se suicidou no dia a seguir. Nunca cheguei a saber o nome dela, e aparentemente nem a minha mãe. Parece que ninguém a conhecia, e no fundo, era a verdade.